Vertical
>> segunda-feira, junho 06, 2005
Alguns desportos de ar livre parecem-me particularmente apaixonantes pela relação que se estabelece com o meio em que decorrem. Posso estar enganado, mas não consigo encontrar num campo de futebol ou numa pista de atletismo uma ligação afectiva com o meio como acontece com desportos de neve, com o surf ou, no meu caso particular, com a escalada em rocha.
Quando se trepa por uma falésia vertical, sustentando o peso do corpo, com grande esforço físico, sobre pequenas saliências ou reentrâncias da rocha, tentando controlar o medo de cair (embora as quedas actualmente não impliquem risco real), sentimo-nos estranhamente ligados ao “corpo” da rocha. A forma como a sua textura nos fura a pele dos dedos, o facto de frequentemente a sentirmos até com o rosto, cria uma ligação afectiva, que toca muitas vezes as raias da paixão. Sei que isto pode parecer absurdo para quem não teve o privilégio de o sentir, mas acreditem que não sou o único a descrever as coisas desta forma.
Sonhei muitas vezes que conseguia voar, julgo que é um sonho universal, sobretudo quando somos mais novos e os nossos sonhos se deixam passear por áreas que mais tarde consideramos “infantis”. No meu caso o acto de voar nunca era uma coisa fácil, era como se fosse uma natação pelo ar acima, que exigia esforço e concentração para não voltar a cair na cama com estrépito, acordando meio baralhado. A coisa mais próxima que encontrei na vida real desse sonho frequente é a escalada em rocha.
Quando nos preparamos para trepar uma determinada “via”, seguimos um ritual que nos vai preparando lentamente para o desafio seleccionado. Ligamo-nos à corda (e através dela ao nosso parceiro de cordada, em cujas mãos depositamos integralmente a nossa vida. Haverá união mais forte no desporto?), preparamos as peças de equipamento que nos servirão de protecção em caso de queda, colocamos uns sapatos apertadíssimos, que parecem saídos de câmaras de tortura medievais, secamos as mãos com magnésio que transportamos à cintura e descolamos.
Os movimentos que se fazem para escalar uma via envolvem todo o corpo. As mãos e os pés estão em contacto com a rocha, mas sentimos cada fibra muscular como se dançássemos. Vejo dentro da cabeça cada parte do corpo e penso já na próxima presa que preciso de conseguir agarrar para dar mais um passo na direcção oposta à da força da gravidade. Temos sempre muito ar à nossa volta. A concentração é quase opressiva. Pensa-se tanto, em tantas coisas simultaneamente, que não sobra espaço para as preocupações mundanas. Chegados ao topo, já confortavelmente sentados na ponta da corda, despejamos a pressão e damos conta que ficou tudo vazio. Só sobra mesmo o intenso prazer da conquista e a memória dos movimentos do corpo que lhe deram origem. Em determinadas vias particularmente belas, naqueles momentos mágicos do fim do dia, em que o calcário já está doirado pela luz rasante do Sol, já me aconteceu chorar. Convulsivamente.
Se isto não é paixão, o que será?
Ontem estive a escalar, e tenho ainda o prazer dessa memória a dificultar-me o arranque da semana. Hoje ouvi na rádio falar dos planos de ordenamento das orlas costeiras. São instrumentos cegos, que pretendem proteger a costa (incluindo algumas falésias importantes) de tudo e de todos. Não tiveram obviamente em conta que há gente para quem as falésias são uma parte fundamental da vida. Tenho medo do que aí vem.
ZM
4 comments:
Eu nunca escalei. Mas depois de ler o texto senti que é mesmo uma paixão. Também me senti a chegar ao topo, com a vantagem de não ter os pés apertados. Parabéns ao narrador. Para mim, desporto também rima com natureza, ar livre na busca de aventura, desafio, liberdade, prazer.
Um abraço
Por pura paixão...
Sempre achei que só assim se conseguem fazer as coisas boas da vida.
Obrigado zm por este início de semana tão inspirador. É um prazer saborear a paixão pelas coisas nas palavras escritas com gosto, com garra, com alma.
Que bem escreves!
um beijinho
ainda me lembro das poucas vezes que escalei...Muitas delas contigo (senão todas?!) Para mim era também uma sensação tactil e olfactiva (parece que estou a lembrar esses cheiros a terra quente, hum...) E também eu fazia e ainda faço desses sonhos em que andamos a voar. Que sensação! Para mim era talvez como nadar com uma facilidade e uma ligeireza que é mesmo um sonho!
Espero que não te acabem com os sitios de escalada...e com os teus sonhos. Embora compreenda que é preciso proteger as Costas portuguêsas de certos abusos e que disso depende também o futuro dos sitios ditos "frageis".
Acho que deve haver espaço para todos em boa harmonia, não?!
Olá ZM
Traduziste um pouco do que se passa dentro de mim, quando em cada movimento me fundo com a rocha e a sinto como se ela fizesse parte do meu corpo. A luta é constante, pois a Mãe Natureza não permite tais "ajuntamentos" e por isso envia a sua amiga Gravidade para que nos momentos de menor harmonia eu seja expulso de volta ao local onde fico com os pés assentes na terra e me obrigue a parar de sentir e de ter prazer...
Afinal o orgasmo não pode ser eterno!
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