Diário da Pandemia - Dia 43

>> quinta-feira, março 04, 2021

 Hoje é um dia curioso nestes posts da pandemia: é o dia 04/03 e simultanemante o dia 43 do meu "diário".


Trago aqui duas notas sobre livros.


Há dias (antes de ontem) ia a correr tranquilamente e encontrei junto a um contentor de lixo um caixote e um saco com livros dentro e outras coisas. É bastante frequente aqui na zona as pessoas deixarem coisas velhas mas aproveitáveis junto dos contentores e em pouco tempo desaparecem. Nada se perde, tudo se transforma. Nós próprios temos cá bastante loiça em casa que foi recolhida do lixo, alguma dela muito suja e hoje perfeitamente a uso. Aliás, ao ritmo a que partimos loiça cá em casa, desconfio que já temos mais pratos e chávenas encontrados na rua do que comprados na loja.


Neste caso, uma das primeiras coisas que me veio parar às mãos quando iniciei uma curta exploração dos "livros esquecidos" foi um postal da Vila da Mameleira, que curiosamente é a terra de origem dos meus avós paternos.


Estava dado o mote para uma incursão no lixo que acabou por valer a pena.

Quando comecei a espreitar os livros, fui encontrando alguns relativamente interessantes, mas como estava em roupa de correr, sabia que não iria levar mais do que um ou dois, por isso fui explorando.
Lá mais para baixo na pilha salta-me para as mãos o formidável "A Sombra do Vento", do Carlos Ruiz Zafón, que tive o privilégio de comprar na sua primeira edição em Portugal (provavelmente em 2004), tendo descoberto este escritor com pura intuição e não através de qualquer tipo de marketing ou recomendação de outrém. Entretanto, tinha-o emprestado há já uns bons anos e, como me acontece com frequência, nunca mo devolveram. O Universo encarregou-se de mo devolver agora, absolutamente novo, talvez nunca lido. Já pus lá dentro o postal da Marmeleira e será a sua marca quando o reler em breve.

Regressei a casa com este livro nas mãos, mas aproveitei para telefonar à Raquel a perguntar-lhe se quereria dar uma vista de olhos na "biblioteca". Ela foi-me apanhar de carro, voltámos ao contentor e ainda trouxémos mais alguns. Pantaleão e as Visitadoras, de Mario Vargas Llosa, um livro de mandalas para pintar e um livro "pop up" sobre arquitectura moderna, muito engraçado e em bom estado.



Ando há já algum tempo com o "Moral Landscape" do Sam Harris, mas não tenho conseguido disponibilidade para o terminar. Entretanto, há uns dias atrás, tropecei num velho livro que tenho cá em casa, que terá sido escrito em Cuba, em 1951, publicado pela primeira vez em 1952 e publicada em 1965 (o ano em que nasci) a edição que tenho. Trata-se do "The Old Man And The Sea", do Ernest Hemingway. Há muito que pensava ler este curtíssimo romance, e acabou por ser desta vez, numa espécie de sanduiche literária entre outros livros tipo ensaio.

É uma história quase sem história nenhuma: um velho pescador de Havana, com um historial recente de "pouca sorte", de alguma forma abandonado pelo resto da comunidade piscatória, sai para o mar no seu "skiff" disposto a virar o seu fado. Vai mais longe do que é habitual e pesca efectivamente o maior peixe que alguém jamais tinha pescado naquela área com aqueles recursos. Mas cedo começa a sentir-se não merecedor de tal prémio. As nossas sombras fazem-nos sabotar os nossos feitos, mesmo quando tudo concorre para resultados fora de série. Se não acreditamos que merecemos o que conseguimos, a nossa sombra acaba por invocar o Universo contra nós. Parece magic talking, mas tudo indica que é mesmo assim que acontece. Esta história mostra-nos isso de uma forma intensa. Não vou dar spoiler do final, mas desde a pesca do extraordinário marlin até ao regresso do Old Man (só nas derradeiras páginas sabemos chamar-se Santiago) ao porto tudo se passa no pequeno skiff e na cabeça do pescador. É uma história pequenina, mas cheia de sumo. Muitíssimo comovente. Tenho na boca o sabor salgado dos mares cubanos. Ficaram a reverberar-me na memória o marulhar das ondas e a radiação intensa do sol.



E sabe tão bem ler um livro tão antigo, escrito muito antes de eu nascer e, neste caso, impresso no ano em que nasci. Os livros têm uma vibração, como as casas. Parecem adquirir para sempre a energia das pessoas que os "habitam". Gosto de ler livros velhos. Este é imperdível. Fundamental.


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