Diário da Quarentena - Dia 18
>> domingo, março 29, 2020
Um dos temas que me tem ocupado o pensamento nestes dias é a forma como as pessoas interpretam o caos em que vivemos e os anseios que têm face ao que possa resultar de bom e de mau de toda esta crise. Há muito quem deseje a total ruína de tudo o que nos trouxe aqui, acreditando que das cinzas sairá algo francamente melhor e mais "ordenado". Pessoalmente, quero crer que daqui a uns meses (talvez demasiados meses) voltaremos a viver de uma forma próxima da que vivíamos antes, mas agora com uma outra capacidade de olhar para as zonas de sombra dos sistemas em que operamos, para fazermos uma transição serena, sólida e sustentável.
Várias pessoas que conheço partilharam este artigo de Charles Eisenstein, onde se levantam questões pertinentes sobre de que forma desejamos viver no futuro em termos de medidas de segurança e desinfecção, e até que ponto o afastamento das pessoas compensa o preço a pagar em vítimas desta ou de outras pandemias.
Nele se diz, a páginas tantas:
"We stop, hardly able to believe that now it is happening, hardly able to believe, after years of confinement to the road of our predecessors, that now we finally have a choice."
Incomoda-me que pareça haver tanta gente que anseia pelo colapso para finalmente ter uma escolha. Nós tivemos sempre uma escolha. Não precisamos que caia o sistema em vigor para inventarmos uma coisa melhor, podemos sempre, pelo contrário, inventar coisas que tornem obsoleto o sistema em vigor, substituindo-o por ridículo e não por supressão.
Julgo que terá sido o Jordan Hall que disse que está na altura de entregarmos as chaves disto tudo a uma geração mais nova, para que o conservadorismo dê lugar à creatividade, para que comecem a criar-se estruturas sociais que possam garantir-nos continuidade (coisa que manifestamente as actuais não garantem). Esta é uma estupenda altura para se juntarem os que irão forçosamente ter que tomar as rédeas do poder nos próximos anos e comecem a emergir soluções fora da caixa e modelos de vida que invertam o curso de "desenvolvimento" que percorremos desde a Segunda Grande Guerra até aqui. Não é preciso começar das cinzas. Não é necessário o colapso do que existe hoje. Bastará substituir e melhorar ou, como diria o Ken Wilber, transcend and include.
Além disso, quem nos garante que o que for iniciado do zero, na hipótese do total colapso, será melhor do que o que tínhamos antes? As pessoas, nos momentos de alteração radical das condições de vida, e particularmente em períodos de medo, tendem a regredir no seu desenvolvimento pessoal, em lugar de progredirem. Tendem a voltar a lugares que consideram seguros. Não me parece que daí resulte nada de interessante se o que queremos co-criar for construído a partir de cinzas e de caos.
Gostei da ideia: "I have my opinions, but if there is one thing I have learned through the course of this emergency is that I don’t really know what is happening. I don’t see how anyone can, amidst the seething farrago of news, fake news, rumors, suppressed information, conspiracy theories, propaganda, and politicized narratives that fill the Internet. I wish a lot more people would embrace not knowing. I say that both to those who embrace the dominant narrative, as well as to those who hew to dissenting ones. What information might we be blocking out, in order to maintain the integrity of our viewpoints? Let’s be humble in our beliefs: it is a matter of life and death.". Era bom que todos tivéssemos essa percepção. Ninguém sabe exactamente o que se está a passar. Era bom que cada um procurasse informação credível, construísse a sua história, mas não encharcássemos o espaço colectivo de premonições, ameaças e segredos de polichinelo.
Comecei por pegar neste artigo por não me rever no início, mas com a leitura até ao fim acabo por encontrar sentido em muitos dos pontos apresentados.
'“How do we protect those susceptible to Covid?” invites us into “How do we care for vulnerable people in general?”'
Vale a pena ler até ao final.
Hoje tivemos que ir às compras a um supermercado. Com 6 pessoas em casa, dois gatos e uma cadela, não temos outro remédio senão ir às compras de vez em quando. Vamos conseguindo suprir muitas das necessidades nas mercearias da aldeia, mas pelo menos uma vez na semana vamos a um supermercado. Hoje não havia filas para entrar, o que é positivo e surpreendente, mas não nos deixam entrar aos dois ao mesmo tempo. Um casal apresenta-se na porta do Lidl para fazer compras, mas apenas um é autorizado a entrar. Que diferença faria se entrássemos os dois e fossemos considerados dois clientes em vez de um? Sobretudo numa altura em que não havia filas para entrar. A forma como se exagera nas regras e se impõe a toda gente comportamentos arbitrários que não parecem ter qualquer efeito no risco que corremos incomoda-me.
Da próxima vez teremos que fazer de conta que não nos conhecemos, para podermos entrar ambos à vez, e depois fazemos as compras juntos como gostamos. Se ninguém deve separar o que Deus uniu (ou o Conservador, ou o destino ou a fortuna), não será o raio de um vírus que nos há-de afastar.
Para ilustrar os dias da quarentena, como tenho feito diariamente, aqui ficam duas fotos tomadas cá em casa há pouco.
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