Diário da Quarentena - Dia 14

>> quarta-feira, março 25, 2020


Matias, brincando com o Infinito.

Tenho lido vários posts e comentários nas redes sociais que condenam a prática da corrida neste período de quarentena obrigatória. Deixo aqui algumas notas e reflexões sobre o tema:

1 - Eu corro quase diariamente há mais de 15 anos. É um hábito que entrou devagarinho, como todos os hábitos – os bons e os maus – e se instalou de uma forma que acredito que seja difícil de compreender para algumas pessoas. Se me disserem num dia que só tenho tempo ou para correr ou para almoçar, eu escolho correr. Não digo que escolhesse sempre correr em lugar de comer, mas sou bem capaz de saltar uma refeição se for essa a única forma de ir correr nesse dia. O que quero dizer é que, por estranho que possa parecer a quem não corre, a corrida é-me quase vital. Correr está numa camada da minha pirâmide de Maslow logo acima de comer e respirar, e seguramente abaixo da ligação ao wifi.
Mas não são só os não corredores que criticam esse “luxo”, também me tenho sentido criticado por quem corre, por quem sabe bem o que significa correr para quem está “viciado”, e para isso eu tenho uma outra explicação (mais adiante).
No caso de quem não corre, é fácil perceber que considerem desadequado correr o mais remoto risco (arriscando igualmente o contágio de outrem), por um hábito que consideram uma futilidade. A única coisa que lhes posso dizer é que correr diariamente, para mim, é mesmo importante. Se não fosse, não sairia de casa para o fazer numa altura destas, até porque não me custa assim tanto estar em casa.

2 – Moro numa aldeia da zona rural de Sintra. Consigo sair de casa, enfiar-me na Serra, correr durante 50 minutos ou uma hora e não me cruzar com mais de 10 pessoas no total, nunca a menos de 3 metros de distância (aliás, por estes dias, nota-se bem o esforço que as pessoas fazem por se afastarem quando se cruzam nos caminhos). Francamente, a probabilidade de me contaminar ou contaminar outrem com o raio do bicho nesta minha actividade é absolutamente residual.

3 – Têm-me dito que uma das razões para não ir correr é a possibilidade de ter um acidente e precisar de assistência médica, comprometendo a disponibilidade desse recurso actualmente escasso para quem mais precisa dele. Sou sensível a esse argumento, mas uma vez mais recorro à probabilidade de tal acontecer: corro há mais de 15 anos, maioritariamente em trilhos, faço inúmeras provas por ano, e nunca tive mais do que uns riscos nos cromados, não me parece que deva privar-me desta necessidade por esse motivo, sinceramente.

4 – Também percebo que, para quem não tem o privilégio de poder correr em lugares onde NUNCA há ninguém (não estão vazios por as outras pessoas estarem de quarentena), é um bocado irritante saber que há quem ande a correr alegremente. Essas pessoas devem lembrar-se que há inúmeras outras vantagens que têm por morar em zonas urbanas que eu não tenho por morar no campo. São escolhas.

5 – Finalmente, a reflexão que mais me interessa, e que talvez justifique porque é que mesmo quem gosta de correr preferia ver-me em casa fechado.
Foi publicado há dias o testemunho de um famoso corredor Espanhol que diz que, apesar de poder correr sem se cruzar com ninguém, não o faz para dar o exemplo e por respeito para com os mais velhos e para com o pessoal da linha da frente (a quem aproveito para tirar aqui o meu chapéu). A mim parece-me absurdo que uma pessoa se sacrifique por respeito seja ao que for, se isso não contribuir de facto em nada para solucionar o problema. É como as velhas que vão sofrer de joelhos para Fátima, é inútil, só serve para si próprias.
Isto remete para uma ideia mais vasta que tenho sentido que está por trás de muitos posts das redes sociais destes dias, embora de forma totalmente inconsciente, que é a velha noção Judaico-Cristã de que para merecermos de novo o que tínhamos antes teremos que sofrer, teremos que aceitar o castigo.

O Deepak Chopra fala muito desse conceito que temos gravado no nosso subconsciente colectivo: a ideia de que se não sofrermos não merecemos nada de bom. A isso podemos juntar a ideia que também me parece estar muito presente nalgumas intervenções de que a COVID-19 é um castigo divino ou do Universo ou da Terra ou lá de quem seja e que, a menos que aceitemos ficar ali no canto com orelhas de burro, jamais o mundo será abençoado com o fim desta praga. Julgo que muitas das pessoas que criticam fortemente quem não se auto-castiga estão incomodadas com essa possibilidade. Precisam de um cordeiro de Deus que tire o pecado do mundo e a minha corrida fá-los temer que os Deuses não estejam contentes.
A este propósito, recomendo o texto recente do Rui Zink aqui.

6 – Claro que as saídas de cada pessoa de casa têm que ser feitas com bom-senso. O texto que anda por aí a circular sobre um tal Aníbal (curioso nome) que passa todo o dia na rua com o pretexto de que está sempre a fazer coisas que são autorizadas na lei é totalmente absurdo e uma forma infantil de pretender culpar os outros. Embora nos últimos 14 dias só tenhamos utilizado o carro para ir ao supermercado, houve uma ocasião em que fomos com os miúdos a um lugar da Serra onde íamos com alguma frequência, para os deixar caminhar um pouco no meio do bosque. Quando chegámos, verificámos que havia lá mais gente. Nem estacionámos, demos meia-volta ao carro e voltámos para trás. Uma ou duas pessoas a correrem na marginal de Espinho é seguro, 30 já não é. Não tenho nenhuma sugestão para regular isto além do simples e natural bom-senso.
Tenciono manter-me a correr até que haja alguma proibição em contrário (espero que não haja), mas isso não quer dizer que não respeite o imenso sacrifício que muita gente está a fazer no momento em que corro. Como já disse, tiro o meu chapéu a todos os que na linha da frente estão cara a cara com o malvado do bicho, mas, sejamos honestos, a minha corrida, por muito prazer que me dê, não complica em nada o vosso trabalho.
Já agora, eu estou no grupo dos mais ansiosos para que tudo isto passe, já que com uma pontaria certeira me despedi do emprego anterior no final de Fevereiro, estando neste momento em casa com 4 filhos e a mulher e sem ordenado, a subsistir de umas poupanças não renováveis até que possa começar o novo projecto profissional que ficou congelado até nova ordem. Nem tudo na vida de quem corre pelo mato são flores.

1 comments:

through my soul 3/28/2020 10:06 da manhã  

Eu não corro, porque não gosto, mas em tudo o resto estou absolutamente de acordo!
Continua a correr e que essa corrida origine toda a energia necessária para seguires em frente com a tua família, para que nada vos falte, para que continuem a crescer fortes por fora e por dentro. Aos dias melhores que hão-de vir!

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