Monte Perdido - III
>> quinta-feira, maio 04, 2006
No dia seguinte, dia 25 de Abril de 2006, pela fresquinha, tomámos o pequeno almoço, lavámos os dentes com gelo líquido e arrancámos em direcção ao cume, esperando que a temperatura levasse algumas horas a subir.
Esta é a única imagem que tenho do Tiago na neve, porque alguns metros acima ele viría a desistir da subida por fadiga nas pernas. Como eu suspeitara, o excesso do dia anterior, um treino menos intenso e uma motivação menos inflamada acabaram por vencê-lo, deixando-me sozinho numa montanha que não conhecia. Felizmente tinha a outra cordada à minha frente, mas não voltei a vê-los até ao famoso lago gelado onde a ascenção verdadeiramente começa.
Até aqui, passei um longo tempo a colocar um pé à frente do outro enquanto pensava no perigoso troço final. Senti-me verdadeiramente perdido. É nestas alturas que nos damos conta da incrível dimensão das montanhas. Penso sempre nos Himalaistas, como o João Garcia, para quem o que a mim mete medo não passa de uma brincadeira de crianças. Neste desporto, ao contrário do que sucede em quase todos os outros, não podemos desmontar da biciclete ou parar de correr e dizer desisto. Com as mesmas pernas com que subimos teremos que descer e não há quem nos dê garrafas de água ou nos transporte a um hospital em caso de lesão. No caso do Monte Perdido, nem sequer tinha rede de telemóvel. Se me desse uma macacoa, quando dessem pela minha falta talvez já estivesse tão teso como os robalos que tenho ali no congelador.
Para não me perder nos meandros da mente, tentei mantê-la ocupada a contar séries de 100 passos. Quando voltei a dar por isso já estava no Lago Gelado.
Neste ponto, como estava sozinho, decidi libertar-me de todo o lastro que não me faria falta. Deixei a corda, uma estaca de neve e toda a quinquilharia metálica e prossegui. Um pouco adiante, teria que superar a temivel "escupidera" (cuspideira, em português), que é um dos pontos mais negros nas estatísticas de acidentes dos Pirinéus. É um lugar onde não se podem cometer erros. Um simples tropeção, sobretudo quando não estamos encordados, como era o meu caso, tem geralmente consequências mortais.
Entretanto, um dos elementos da outra cordada também desistiu e o outro seguiu igualmente sozinho. Aqui em cima vêmo-lo a passar a "escupidera".
Nesta foto, tirada do mesmo local da anterior, mas para o lado de baixo, vemos o cilindro de Marboré (outro 3000) e uns pontinhos que são o tal moço que desistiu à última da hora e a minha mochila, que eu entretanto também abandonei. É que com cagaço da cuspideira, larguei tudo menos a máquina digital compacta, um piolet e umas barritas de cereais.
Nas duas fotos anteriores, veêm o ar com que cheguei ao cume, depois do que me pareceu um longo periodo de concentração para não cometer erros na cuspideira. Na seguinte já estou mais divertido, mas confesso que só respirei fundo quando voltei a passar aquele temível obstáculo em direcção ao Lago Gelado, que neste caso não passava de uma plataforma de neve. Quando eu aínda me dirigia para o cume do Perdido, passou por mim o outro espanhol, que já vinha de regresso. Fiquei completamente sozinho no cume de uma montanha de 3355m de altitude, mais alta do que tudo o mais que conseguia vislumbrar, com um visibilidade magnífica. Foi a mais intensa das minhas conquistas em montanha. Senti-me verdadeiramente privilegiado. Não fosse o receio de voltar a passar a armadilha da cuspideira e teria ficado ali horas sentado a contemplar aquela paisagem de luxo, dono absoluto daquele horizonte gelado. Algumas marcas na neve indicavam que não eramos os primeiros a lá chegar nos últimos dias, como nos tinha dito o guarda do Goriz, mas é verdade que muito poucos o terão feito e naquele momento, tanto quanto a minha vista alcançava, ninguém pisava uma montanha mais alta do que aquela. Os únicos cumes dos Pirinéus mais elevados do que o Perdido são (como já disse) o Aneto e o Posets, ambos muito distantes dali. O cume do Perdido, coberto de neve, é apenas uma estreita crista, mas olhar o vale de Ordesa e o resto da cadeia lá do alto é a melhor celebração da liberdade que um português poderia ter tido no dia 25 de Abril (como disse o Montanhacima, por SMS, quando lhe disse que o Perdido já estava aviado).
A descida foi feita em passo de corrida. Assim que passei a cuspideira quase corri até ao refúgio. Cheguei esgotado, aos trambolhões sobre a neve já amolecida pelo Sol, mas completamente realizado com o cume que acabara de pisar. Esta sensação cola-se-nos à pele e torna-se um verdadeiro vício.
Já no refúgio, voltámos a colocar tudo na mochila, pagámos a estadia (o jantar foi de uma qualidade fora do normal para este tipo de alojamento. Recomendo vivamente) e iniciámos de novo o percurso de regresso ao carro.
Aqui estão de novo as Clavijas, agora no sentido descendente.
Já no fundo do vale, foi difícil separar-me desta visão encantadora do mais belo cume que pisei até hoje. O Monte Perdido é o da esquerda, o outro é o Añisclo.
Este é o Gallinero, um esporão bem conhecido de quem pratica escalada em rocha.
Aqui vemos o Tozal del Mallo, outro famoso naco de rocha.
Os derradeiros passos de chegada ao carro fizeram-me sentir um escafandrista fora de água. Cada passo já me custava uma tonelada. Subir do refúgio ao cume do Perdido e regressar à Pradera no mesmo dia é um programa exigente.
Nos dias seguintes andei com um andar novo, mas feliz como um puto com um brinquedo novo.
ZM
13 comments:
parabéns! Grande conquista e magnifica descrição ...até parece que também lá estavamos. O vale de Ordesa é belíssimo.
Muito bom ZM, tenho seguido atentamente a tua reportagem e até com alguma inveja de ainda não fazer dessas coisas. A fotos da "Cuspideira" é impressionante!
Abraço,
Ricardo R.
muito muito mas mesmo muito bom, lindo...
adorei ler
Parabéns
que grande aventura.
Valente! Não duvidei um só momento q chegarias lá acima: é mesmo de português aventureiro... ao ler o teu relato tb tive essa sensação de lá ter estado. As fotos: belíssimas. Parabéns!
Li a aventura toda hoje e ainda bem... É que me enervei um bocado com o teu relato e se tivesse que esperar para ler os 3 episódios, cada um no seu dia, ficava ainda mais ansioso.
É mesmo verdade! Fiquei realmente nervoso ao longo da história...coisa estranha...
A teoria da relatividade é mesmo isto: para o João Garcia, isto é uma brincadeira de crianças; para ti, uma grande conquista; para mim, uma completa impossibilidade.
Parabéns pelo "avianço" e pela qualidade da escrita também.
Abraços,
És grande " master "... parabéns pelo conseguido
PARABENS !!!
Tinha a certeza que isso tinha sido grande feito mas conseguido !!!
Adorei a descripção e agradeço a foto que juntei às minhas !... aquela em que ris, claro !
Beijokas
As memórias pessoais e os cadernos de viagem são das minhas literaturas preferidas.
Mesmo se não forem muito bem escritas (que não é o caso)transmitem sensibilidades e emoções de uma forma diferente de outras abordagens mais profissionais.
Estas páginas mereciam publicação para uma audiência mais vasta.
Parabéns!
Mais um três mil para a "caderneta".
A "escupidera" é um protento, "dai miedo de puta madre". Parabéns amigo. Hai que tener-los paar hacerlo solo.
Um grande abraço.
vim cá ler mais uma vez
:-)
gostei mesmo
Uma vez que pretendo tentar subir o Monte Perdido no final de Junho, e sou uma principiante, a pesquisa na net é fundamental. Este é um daqueles textos (maravilhosamente escrito) que eu preferia ter encontrado depois de já ter subido.
Fiquei com um frio na barriga. No entanto a vontade é ainda maior.
Fiquei encantada com blog. Parabéns.
ATMoutinho
Os meus parabéns! Con estas maravilhosas fotografias da para ver o emocionante que deve ter sido.
estava pesquisando sobre roupas, sobretudo, e encontrei você no meio de uma paisagem maravilhasa.
Ainda não li seu texto, mas volterei para conhece-lo. Boa sorte.
Bukke
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