No dia seguinte, logo pela fresquinha, fomos à loja de desporto de Torla, onde fomos atendidos por uma brasileira(!), para alugar as raquetes. Na saída da loja, fomos brindados pelos deuses com o primeiro sinal de sorte desde que saíramos de casa: um belo cocó de pássaro acertou-me em cheio no forro polar. Eu estou acostumado a pisar cocós de cão por todo o lado, como se os meus sapatos tivessem um magnetismo cósmico, que me atrai inevitavelmente para os resíduos metabólicos canídeos, mas isso não costuma dar-me qualquer tipo de sorte. Agora um cocó de pássaro, isso já tem uma clara ligação ao céu e o cume que eu pretendia atingir é lá que se encontra.
Fomos de carro até à Pradera de Ordesa (coisa que não pode ser feita nos meses de Verão, em que há uma "navete" que nos leva até lá). Pusemos as volumosas mochilas às costas e arrancámos para umas previsíveis 04:30h de caminhada até ao refúgio de Goriz.
Ao contrário do Tiago (meu companheiro de aventura), eu sabia o que significa caminhar mais de 4 horas. Ele arrancou em passo acelerado e rapidamente lhe perdi o rasto. Eu, provavelmente por saber o que me esperava, doseei melhor o esforço, mantive sempre o mesmo ritmo desde o início, e fui fazendo algumas fotos, enquanto percorríamos o indescritível vale de Ordesa, carregados como mulas.
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O vale de Ordesa tem origem glaciar, mas também foi escavado pelo rio Arazas, pelo que tem um fundo arredondado em algumas zonas, mas é uma garganta na sua maior parte. Nalgumas zonas, tem mais de 500m de desnível entre o fundo do vale e o topo das paredes, o que torna a paisagem absolutamente magnífica.
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Eu e o Tiago voltámos a encontrar-nos no final do bosque das Faias, e seguimos juntos até à famosa "Cola de Cavallo", uma cascata gigantesca que marca o fim do vale. Daqui para a frente será necessário trepar.
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Nesta imagem (acima) vemos as "Clavijas do Soaso", que são uns ferros e umas correntes que tornam mais acessível e segura uma trepada para um patamar superior ao que nos encontrávamos. Este é um recurso muito utilizado nesta zona, mas não é muito simpático para quem não esteja habituado a estas coisas da escalada. A alternativa, para quem não se sinta muito à vontade com este tipo de progressão, é um carreiro em ziguezague, que demorará mais cerca de 45 minutos a percorrer.
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Aqui vemos o Tiago, com a sua pesada mochila, onde se vêem as raquetes de neve, a subir a trepada das "Clavijas do Soaso". Depois deste obstáculo, já faltava menos de uma hora para o ansiado refúgio de Goriz.
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Este é o vale de Ordesa, visto do patamar acima das "Clavijas". O círculo vermelho mostra uma pessoa, no caminho que tínhamos acabado de percorrer. A escala é impressionante.
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Esta é outra imagem do vale, tomada mais acima.
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Finalmente, acabámos por chegar ao Goriz, onde soubemos que seríamos apenas 4 inquilinos, para além do guarda, coisa que é um verdadeiro privilégio, se tivermos em conta que no Verão este refúgio tem 80 pessoas e faz turnos para o jantar para poder suportar as pessoas que dormem em tendas ao seu redor. O Tiago, que se tinha equivocado com a lonjura do percurso chegou a Goriz bastante mais fatigado que eu, o que viria a pagar com juros no dia seguinte.
Depois de termos comido umas comidas liofilizadas que levámos de propósito para este momento entre a chegada ao refúgio e o jantar, fui testar as raquetes. Devo dizer que não fiquei lá muito confiante. Pareciam feitas de Lego. Dobravam-se como cartolina e escorregavam sobre a neve mole como uma barra de sabão azul e branco. Entretanto tomei esta imagem do refúgio, onde se pode ver o corpo das casas de banho. Nos refúgios mais altos é frequente as casas de banho serem no exterior, o que complica um bocado as coisas, mas evita que o mau cheiro atinja a zona de dormir ou de comer.
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Este é um pássaro, que eu não sei identificar, mas que gostou muito dos gofres do Lidl, que estivemos a comer no terraço do refúgio.
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Estas são as janelas do Goriz, mesmo antes da hora do jantar.
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Estes dois caramelos, com ar de quem caminhou 04:30h com mochila às costas, somos nós dois, após o jantar.
O quarto que nos deram foi justamente o Monte Perdido, o que a somar ao tal sinal do cocó de pássaro em Torla, me deu quase a certeza de ir pisar o cume no dia seguinte. Os deuses, nestas matérias, costumam falar claro. Só é preciso saber ler os sinais.
A neve estava demasiado mole, por estarem temperaturas muito altas, o que impediu muita gente de atingir o cume desta montanha a partir de Goriz nos dias anteriores a termos chegado. Mas os sinais dos céus revelaram-se premonitórios e quando durante a noite o nervoso me fez erguer-me da cama para me dirigir aos lavabos no exterior, foi com grande alegria que vi um céu estrelado (e desfocado por ter deixado os óculos no quarto) e senti os pelos das pernas eriçarem-se de frio. Se o tempo continuasse limpo, teríamos frio e visibilidade, que eram os ingredientes que faltavam para uma conquista perfeita do meu terceiro 3000.
Mas o resto desta história fica para a terceira parte. É que tenho compromissos publicitários e tenho que garantir audiências para amanhã.
Será que os intrépidos alpinistas lusos conseguirão atingir o ansiado cume do Monte Perdido, a 3355m de altitude?
Não percam o terceiro e último episódio desta fantástica e animada aventura.
ZM
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