O meu amigo e futuro arquitecto Miguel Taborda emprestou-me um dia destes um livro chamado El Cadaqués de Peter Harnden i Lanfranco Bombelli. Trata da obra desenvolvida por aqueles dois arquitectos, entre 1959 e 1971, no pueblo de Cadaqués, na Costa Brava de Espanha, já quase na fronteira com França.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o ambiente do povoado. Mais tarde dei conta do facto de Cadaqués ficar a escassa distância de um local onde passámos férias não há muito tempo, Cala de Montgó, um pouco a Norte de Estartit, por onde passámos na nossa lua de mel. É uma zona de Espanha que me diz muito, onde passei alguns momentos fantásticos e que tem uma atmosfera mais calma e romântica do que o resto da costa Mediterrânica de Espanha. Depois, encontrei semelhanças entre os primeiros projectos apresentados no livro e o de David Chipperfield de que falei aqui, há tempos. Finalmente, a história destes dois arquitectos, um italiano, outro americano, reunidos na equipa perfeita, companheiros de uma amizade de cerca de 20 anos, apenas truncada pela morte de Harnden, cedo demais, em 1972.
Esta dupla chegou a Cadaqués em 1956, pela mão de Josep Antoni Coderch, que tinham conhecido na Trienal de Milão. Apaixonaram-se de imediato pela terra e em 1959 compraram a primeira casa, a Vila Gloria:
Nota: as imagens que apresento neste post são todas digitalizadas do livro porque não encontrei mais informação sobre este assunto online.
Estava dado o mote para uma série de casas semelhantes a esta, todas com vários andares (coisa que já sabem que gosto), com lareiras exuberantes com a chaminé em ferro preto para espalhar melhor o calor (ainda não se teriam inventado os recuperadores), com varandas de grandes áreas, sempre com mesas e cadeiras que convidavam à conversa, num fim de tarde quente, com os olhos postos no mediterrâneo. Há sempre muito branco, longos sofás confortáveis e espaçosos, estantes gigantescas, planos de água nos terraços e pátios para refrescar o ar e criar aquela luz liquida que o reflexo confere, escadinhas por todo o lado, zonas de duplo pé direito. Também são uma constante as zonas de penumbra, com pequenas janelas cavadas em grossas paredes, a convidar ao sossego e à leitura.
As próximas duas imagens são da casa Staempfli, de 1960. Uma obra de arte, onde apetece verdadeiramente passar um tempo a viver.
Mais tarde aparecem as casas espalhadas no terreno, em zonas mais exteriores ao povoado, numa relação mais próxima com o mar. É disso exemplo a notável Casa Fasquelle, de 1968, frente à casa de Dali. Tem dentro uma imensa estante branca, de dupla face, que serve de barreira acústica, de divisão do espaço e é simultaneamente um belíssimo armazém de livros. A fachada Sul é quase toda envidraçada e sombreada por um extenso alpendre, onde estão as sempre presentes cadeiras de descanso.
Peter empregava materiais autóctones e populares: chão de pedra, tectos de cana ou tijolo, troncos de madeira no lugar de colunas. Projectava interiores quentes e confortáveis como os que vira criados por Shindler, Neutra, Gropius, Wright, de quem era contemporâneo e conterrâneo.
As distribuições de espaço são geniais, favorecendo sempre as áreas sociais em detrimento das privadas. É fácil perceber o quanto prezavam o convívio, a contemplação, a leitura. Alguns espaços parecem ter falta de luz natural, mas talvez isso fosse sobretudo uma forma de se protegerem da canícula Mediterrânica. As salas são geralmente iluminadas por extensos vãos, nalguns casos de dupla altura, mas há sempre espaços mais protegidos, mais contidos, de onde se avista a rua ou o mar através de pequenos vãos muito escavados, que transmitem a sensação confortável de pequenas vigias, onde estamos protegidos. É uma arquitectura orgânica, próxima da natureza e do mar, quente, envolvente e confortável, absolutamente apaixonante.
Cadaqués distava 5 horas da cidade de Barcelona. Era o refúgio de inúmeros arquitectos e outros artistas. Frederico Correa e Alfonso Milá eram dois dos famosos arquitectos que por lá andavam naquela época, para além do já falado Coderch. Artistas, Marcel Duchamp, Man Ray, John Cage, Dali, espalhavam a sua energia criativa e a sua sensibilidade estética, fortalecendo uma atmosfera naturalmente romântica.
Ler este livro, seguir a fortíssima relação existente entre Harnden e Bombelli, sentir o calor de Cadaqués, a energia da criação numa época ainda de pós-guerra, ler nesta arquitectura a influência de outros grandes vultos e compreender por fim quanto estes dois homens conseguiram amar profundamente um local e criarem obras de grande força perfeitamente integradas é algo verdadeiramente emocionante.
Não faço ideia se algum dia conseguirei adquirir este livro, mas enquanto isso não acontecer passei a ter um furo na minha biblioteca. Fora isso, não descansarei enquanto não visitar este povoado tão recheado de histórias, arquitectura e vida, com os pés banhados pelo Mediterrâneo.
Lá perto têm o famoso Cap de Creus, Roses, Estartit, L'Escala, etc. Volto a dizer que é das mais belas zonas da costa Mediterrânica espanhola, com um pretexto mais que suficiente para fazer qualquer um fazer-se ao caminho. Não preciso de recomendar que passem por lá.
ZM
PS: Já me esquecia, o livro trás também um fantástico DVD com visita guiada às casas quase todas e entrevista com Bombelli, uma vez que infelizmente Harnden já não se encontrava por cá. Imprescindível.
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