Indo eu, indo eu a caminho…
Não, não foi em Viseu, foi numa das mais belas e inexploradas zonas da Serra de Sintra, onde vou dar os meus passeios de BTT: a área entre Galamares e a Eugaria.
A ligação mais curta entre aquelas duas povoações é um caminho por onde não passam carros, que tem uma rampa de terra com um declive bastante acentuado, ainda junto a Galamares. No passado Domingo, subia eu esta rampa a pé, com a bicicleta pela mão (podem daqui inferir o elevado porte atlético do artista), quando avisto, já quase no final da rampa, uma mulher ajoujada com um carrego de volumosos sacos, subindo vergada o caminho. Ao cruzar-me com ela, cumprimentei-a e ela disparou de imediato:
- Você é daqui? Já sabe o que aconteceu em Sintra?
Começou assim uma conversa cujo conteúdo eu não vou revelar na totalidade, porque não se enquadra no âmbito editorial deste blog e poderia devassar a privacidade das pessoas envolvidas.
O facto é que a Tia Amélia (assim se chama a senhora) estava muito impressionada com os recentes e trágicos acontecimentos no Mercado de Sintra, onde vende flores. Mal eu tinha aberto a boca já ela me perguntava com aquela inocência que só os velhos e as crianças têm, se eu estava com pressa. Eu respondi que não. Não estava com pressa. Falar com antigos habitantes desta zona que eu adoro, é como descobri-la de novo. Saber que determinada quinta pertence a não sei quem, que determinado morador da quinta tal vai à missa à Capela da Piedade, que dantes as pessoas de Nafarros iam de burro à festa de não sei onde, enriquece tanto a paisagem, que vale mais do que uma semana de exploração.
Disse-me sem mais rodeios que vive sozinha e que quando encontra alguém para conversar gosta de desabafar. Eu disse:
- Desabafe!
Contou-me todos os detalhes sobre os acontecimentos de Sintra e foi também falando do seu próprio passado, da morte trágica do marido, há muitos anos (julgo que quando eu nasci já a Tia Amélia era viúva), de como era a quinta onde hoje ainda habita, da decadência do seu “império”. Houve algumas frases que repetiu muitas vezes ao correr da conversa:
- O dinheiro não é tudo, é preciso é a gente conviver (querendo com isto dizer que é preciso darmo-nos bem uns com os outros).
- Eu tenho medo é de ter algum problema e ainda dar trabalho a alguém.
- O que é preciso é amor.
Tinha colocado um dos volumosos sacos pretos na beira do caminho e desfiava o seu rosário confortavelmente sentada sobre as hortaliças. Recomendou-me, maternal, que me abrigasse do vento, porque devia estar suado (assumindo erradamente que a bicicleta me serve para fazer desporto). Cumprimentou os condutores de todos os (poucos) automóveis que passaram entretanto e dizia: “É meu vizinho, gosto de me dar bem com ele. É preciso é a gente conviver, não é?”
Acompanhei-a à porta de casa e acabei por perder a vergonha e pedir-lhe autorização para a fotografar. Quando já estava mais “desabafada” falámos das quintas, dos caminhos, das igrejas. Admirou-se de eu conhecer tantos caminhos: “Ah, você conhece isto?”.
Falámos de personagens de Sintra, todos seus conhecidos, como o Zé Maria do Monte, que tomou conta da Torre do Relógio da Vila Velha de Sintra, até morrer, não há muitos anos.
Não sabia bem a idade, mas tinha nascido em 1931. “Acho que fiz 74 há dias, não é assim?”.
Por mim tinha lá ficado mais tempo, mas tinha um programa a que não podia faltar.
Voltei para casa um pouco estranho. Depois de ter estado mais de uma hora a ouvir falar uma desconhecida que me abordara para me contar tragédias, sentia-me confortado por ter conhecido a personagem e um pouco da sua história. Deve ser a isto que chamam catarse.
Pedalei menos do que tinha previsto, mas aprendi muito mais. Aqui vos deixo os retratos da Tia Amélia. Se a quiserem encontrar, passem pela praça da Estefânia: “Estou mesmo à entrada, para apanhar primeiro os clientes”. Vende flores e tem tanto para contar, que podia vender só histórias.
Se lá passarem mandem-lhe um beijinho meu.
Boa semana.
ZM
PS: lembrei-me das Histórias do Arco da Velha, da manamagana.
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