Diário da Quarentena - Dia 20

>> terça-feira, março 31, 2020


O Matias, ainda com cara de sono, a aguardar que o pequeno-almoço fique pronto.


O meu habitual café agora é sempre em versão doméstica (embora haja cafés aqui da aldeia a venderem bicas em Take Away, em copos de plástico). Sabe-me mesmo bem este momento da manhã.


Hoje apanhei a sessão de acompanhamento do Lourenço nas suas lides "académicas".


A minha corrida de hoje passou pelo alto da Praia da Adraga. Cada vez encontro menos gente nas minhas corridas. Na verdade, deprime-me ver tudo tão deserto, embora isso possa ser considerado um bom sinal do nosso comportamento colectivo).



Foi publicado um texto no Facebook (vale o que vale), que parece dar a ideia de que para os Franceses é difícil perceber como é que em Portugal se consegue manter o povo em casa sem ser necessária uma intervenção policial musculada ou os tais formulários que os pobres Franceses têm que preencher cada vez que precisam de levar o cão à rua. Na verdade, o texto tem algumas incorrecções, designadamente o achar que ainda estamos a ser governados pela Geringonça, mas se é verdade que nos vêem desta forma, isso devia ser motivo de orgulho para os que efectivamente têm ficado em casa (como eu, à excepção da corrida diária) e devia também desmotivar os perseguidores de free riders, que afinal parecem não fazer assim grande mossa.
Se preferirem ouvir aqui fica:





A propósito do texto publicado pelo meu amigo Açoriano Miguel Bettencourt, partilho algumas ideias que me têm ocorrido sobre o tema da educação:
Durante bastante tempo, talvez até ao final deste ano lectivo, os alunos de todo o mundo irão ficar com sérias limitações de acesso às escolas ou pura e simplesmente em casa.
Esta é a oportunidade ideal para repensar todo o sistema, fazer-lhe um reboot, como dizia alguém há dias.
Eis algumas questões que deveremos fazer para permitir a emergência de um sistema de educação que seja melhor para todos:
1 - Será que é mesmo necessário, no século XXI, haver aulas presenciais? Ter um professor em frente a 30 alunos, todos virados para um quadro, todos a ouvirem o mesmo discurso, ao mesmo tempo?
2 - Com que critério definimos que matérias deverão os alunos todos de determinado ano aprender? Serão de facto as mais adequadas? Como poderemos definir um "esqueleto" de conhecimento que tenha que ser comum a todos os alunos? Terá ele que existir?
3 - Será fundamental dar notas nas avaliações? Teremos mesmo que distinguir os alunos por notas obtidas em testes? Ou bastará que os alunos demonstrem (eventualmente com auto-testes) ter compreendido determinada temática que decidiram ou lhes pediram para estudar?
4 - Não deveria haver mais espaço na vida académica para actividades não lectivas (do ponto de vista formal)? Exemplos: horta, actividade física, laboratórios de ciência, robótica, programação, escrita criativa, poesia, relacionamento inter pessoal, arte, etc.
5 - Será necessário obrigar os alunos a estar na escola quando eles não queiram lá estar (e tenham autorização dos pais para irem para casa, ou outro lado qualquer)? Fará sentido continuar a "chumbar" alunos por faltas, se eles encontrarem forma de aprender o que é suposto dispensando as aulas formais?
6 - Teremos mesmo que manter as "disciplinas" relativamente estanques, com professores de matemática que não sabem nada de Português ou de Educação Visual que não sabem nada de Física? Não poderão os professores ser mais polivalentes, acompanhando os alunos no seu estudo das várias matérias e recorrendo a "especialistas" quando patinam num determinado tema?

Este é o momento para fazer um verdadeiro brain storm sobre o sistema de educação. Quanto mais depressa encontrarmos soluções que se adaptem ao estranho tempo que vivemos, mais cedo estaremos preparados para o que ainda aí vem. Ou muito me engano ou as limitações com que estamos a viver hoje manter-se-ão por mais tempo do que gostaríamos ou regressarão mais vezes do que seria desejável. A educação terá que finalmente se libertar do modelo industrial e centralizado que a caracteriza há uns bons 200 anos ou não conseguirá adaptar-se à variabilidade dos próximos anos.


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Diário da Quarentena - Dia 19

>> segunda-feira, março 30, 2020



Hoje de manhã houve "aulas". Normalmente, as coisas não têm este ar formal, mas hoje parece mesmo uma aulinha em regime de Homeschooling.

Entretanto, como quase todos os dias, estive a correr na Serra. Desta vez não vi vivalma em todo o percurso à excepção dos operários que estão a "arranjar" o estacionamento e os acessos à Peninha. Como antes de sair estive a preparar uma sopa para estar feita para o almoço, quando cheguei já o resto da família almoçava.

Depois do almoço andei de volta destes artigos e videos que apresento abaixo. Food for thought.



Eu não tinha previsto isso, mas tenho sentido um apelo para partilhar aqui as coisas interessantes que vou encontrando nas minhas explorações online.



Neste caso, temos uma entrevista com Bill Gates, o "visionário" que previu há 5 anos atrás exactamente o que estamos agora a enfrentar. Parece claro que é alguém que está muito à frente na compreensão do fenómeno.




Mapa original do site Inner Throne.

Por estranho que possa parecer, este texto fez-me vibrar. Bem sei que aborda, mais uma vez a questão do colapso (com a qual eu não estou confortável), mas leva-nos rapidamente à "Jornada do Herói", propondo-nos um mergulho no Underworld, do qual haveremos de conseguir sair, depois de mais algumas aventuras e dissabores.

"You have been asked to embark upon a quest.

Will you accept?

If you do, and I do, and all those who can hear the call amidst the cacophony of panic and misinformation do, then perhaps we will be able to look back on this momentous time not simply as the catastrophe it surely is, but also as the time we stood up, and set ourselves upon a new course that led towards a new world."



Já ontem tinha feito uma referência a Jordan Hall. Hoje partilho um artigo seu que sintetiza de uma forma muito sistemática e, quanto a mim, produtiva e conclusiva, de que forma podemos aproveitar o caos destes dias para nos erguermos e ajudarmos a erguer alguma coisa melhor do que o que temos tido até agora.

Não sei se quem vai acompanhando este diário aproveita para ir explorar as pistas que vou deixando. A razão por que coloco tudo isto no blog é porque eu próprio quero poder revisitar esses links no futuro.

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Diário da Quarentena - Dia 18

>> domingo, março 29, 2020

Um dos temas que me tem ocupado o pensamento nestes dias é a forma como as pessoas interpretam o caos em que vivemos e os anseios que têm face ao que possa resultar de bom e de mau de toda esta crise. Há muito quem deseje a total ruína de tudo o que nos trouxe aqui, acreditando que das cinzas sairá algo francamente melhor e mais "ordenado". Pessoalmente, quero crer que daqui a uns meses (talvez demasiados meses) voltaremos a viver de uma forma próxima da que vivíamos antes, mas agora com uma outra capacidade de olhar para as zonas de sombra dos sistemas em que operamos, para fazermos uma transição serena, sólida e sustentável.

Várias pessoas que conheço partilharam este artigo de Charles Eisenstein, onde se levantam questões pertinentes sobre de que forma desejamos viver no futuro em termos de medidas de segurança e desinfecção, e até que ponto o afastamento das pessoas compensa o preço a pagar em vítimas desta ou de outras pandemias.

Nele se diz, a páginas tantas:
"We stop, hardly able to believe that now it is happening, hardly able to believe, after years of confinement to the road of our predecessors, that now we finally have a choice."
Incomoda-me que pareça haver tanta gente que anseia pelo colapso para finalmente ter uma escolha. Nós tivemos sempre uma escolha. Não precisamos que caia o sistema em vigor para inventarmos uma coisa melhor, podemos sempre, pelo contrário, inventar coisas que tornem obsoleto o sistema em vigor, substituindo-o por ridículo e não por supressão.
Julgo que terá sido o Jordan Hall que disse que está na altura de entregarmos as chaves disto tudo a uma geração mais nova, para que o conservadorismo dê lugar à creatividade, para que comecem a criar-se estruturas sociais que possam garantir-nos continuidade (coisa que manifestamente as actuais não garantem). Esta é uma estupenda altura para se juntarem os que irão forçosamente ter que tomar as rédeas do poder nos próximos anos e comecem a emergir soluções fora da caixa e modelos de vida que invertam o curso de "desenvolvimento" que percorremos desde a Segunda Grande Guerra até aqui. Não é preciso começar das cinzas. Não é necessário o colapso do que existe hoje. Bastará substituir e melhorar ou, como diria o Ken Wilber, transcend and include.
Além disso, quem nos garante que o que for iniciado do zero, na hipótese do total colapso, será melhor do que o que tínhamos antes? As pessoas, nos momentos de alteração radical das condições de vida, e particularmente em períodos de medo, tendem a regredir no seu desenvolvimento pessoal, em lugar de progredirem. Tendem a voltar a lugares que consideram seguros. Não me parece que daí resulte nada de interessante se o que queremos co-criar for construído a partir de cinzas e de caos.

Gostei da ideia: "I have my opinions, but if there is one thing I have learned through the course of this emergency is that I don’t really know what is happening. I don’t see how anyone can, amidst the seething farrago of news, fake news, rumors, suppressed information, conspiracy theories, propaganda, and politicized narratives that fill the Internet. I wish a lot more people would embrace not knowing. I say that both to those who embrace the dominant narrative, as well as to those who hew to dissenting ones. What information might we be blocking out, in order to maintain the integrity of our viewpoints? Let’s be humble in our beliefs: it is a matter of life and death.". Era bom que todos tivéssemos essa percepção. Ninguém sabe exactamente o que se está a passar. Era bom que cada um procurasse informação credível, construísse a sua história, mas não encharcássemos o espaço colectivo de premonições, ameaças e segredos de polichinelo.

Comecei por pegar neste artigo por não me rever no início, mas com a leitura até ao fim acabo por encontrar sentido em muitos dos pontos apresentados.
'“How do we protect those susceptible to Covid?” invites us into “How do we care for vulnerable people in general?”'
Vale a pena ler até ao final.



Hoje tivemos que ir às compras a um supermercado. Com 6 pessoas em casa, dois gatos e uma cadela, não temos outro remédio senão ir às compras de vez em quando. Vamos conseguindo suprir muitas das necessidades nas mercearias da aldeia, mas pelo menos uma vez na semana vamos a um supermercado. Hoje não havia filas para entrar, o que é positivo e surpreendente, mas não nos deixam entrar aos dois ao mesmo tempo. Um casal apresenta-se na porta do Lidl para fazer compras, mas apenas um é autorizado a entrar. Que diferença faria se entrássemos os dois e fossemos considerados dois clientes em vez de um? Sobretudo numa altura em que não havia filas para entrar. A forma como se exagera nas regras e se impõe a toda gente comportamentos arbitrários que não parecem ter qualquer efeito no risco que corremos incomoda-me.
Da próxima vez teremos que fazer de conta que não nos conhecemos, para podermos entrar ambos à vez, e depois fazemos as compras juntos como gostamos. Se ninguém deve separar o que Deus uniu (ou o Conservador, ou o destino ou a fortuna), não será o raio de um vírus que nos há-de afastar.



Para ilustrar os dias da quarentena, como tenho feito diariamente, aqui ficam duas fotos tomadas cá em casa há pouco.



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Diário da Quarentena - Dia 17

>> sábado, março 28, 2020



O meu amigo Ricardo Belchior partilhou hoje no Facebook este vídeo. Para o meu cérebro de engenheiro, esta abordagem faz imenso sentido. As conclusões desta "brincadeira" são bastante interessantes:
1 - Esta epidemia está a ser muito complicada porque mata pouco e ao fim de muito tempo. Eu sei que isto é abrutalhar a conclusão, mas é o que o modelo demonstra;
2 - As medidas mais importantes para conseguir "achatar a curva" e extinguir a epidemia são a identificação precoce dos infectados (o tal "testar, testar, testar"), removendo-os da comunidade, e medidas de higiene apertadas para reduzir a probabilidade de infecção.
3 - Fechar escolas e outros locais de encontro parece ser também uma medida importante.
Dir-se-ia que, ao contrário do que têm afirmado alguns "Calígulas de varanda", a forma como esta crise tem sido gerida pelo Governo e pela DGS é acertada.





O último álbum de Nils Frahm foi editado hoje mesmo. Mais uma vez, a notícia chegou-me pela mão do Ricardo Mariano, do Vidro Azul. Agradecido.





Já agora, já está disponível o podcast do episódio de Radio Call em que participei há dias. É um programa da SBSR que dá todos os dias da quarentena entre as 19:00h e as 20:15h ou coisa que o valha.



Como quase todos os dias, hoje fui fazer a minha corrida. Fui até ao Cabo da Roca, agora vazio de gente mesmo ao fim-de-semana, regressando pela Praia da Ursa. Como tem sido habitual, cruzei-me com muito pouca gente e nunca a menos de 3 metros de distância. Aqui ficam 2 fotos que fiz nessa corrida.







Hoje, tal como prevíamos, não houve obras no andar de baixo. Menos mau.
Falei com o meu pai ao telefone. Já tenho saudades de uma churrascada de peixe no nosso quintal, regada com um branco fresquinho aqui da zona (gosto do Mare & Corvus, muito mineral) e acompanhado de batatas daqui da feira, assadas no forno, com azeite e orégãos. Para já, tudo indica que esse desejo é uma miragem, até porque, como já relatei, a senhoria nos deu cabo do quintal. Melhores tempos virão.
Recebi também um telefonema relacionado com trabalho. Não quero adiantar ainda novidades, mas parece que há luz no fundo do túnel.
Um dia desses reparei que estou a fazer e receber umas 5 chamadas telefónicas por semana. Há uns tempos, quando queria recuperar o número da pessoa com que tinha falado de manhã na lista de chamadas tinha que percorrer vários ecrãs de chamadas para lá chegar. Estranha forma de vida, esta que temos agora.
Se viram o vídeo que partilhei no início deste post, já sabem que, pelo menos por agora, vale a pena mantermo-nos afastados dos outros e lavarmos as mãos com frequência, sobretudo quando vimos da rua. E enquanto na rua, não levem as mãos à cara. Os meus filhos tinham uma brincadeira que era "o chão é lava", nós, na rua, temos que adoptar o meme "as mãos são lava".
Fiquem em casa por mais uns tempos. Isto vai passar, e se tivermos juízo, ficaremos nos registos como um dos países da Europa onde os sistemas de saúde não chegaram a colapsar.
Até amanhã.

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Diário da Quarentena - Dia 16

>> sexta-feira, março 27, 2020



Hoje mais em jeito de diário propriamente dito.

O meu dia começou com o habitual pequeno-almoço: um green smoothie magnífico com 1 laranja, 1 banana, 1 pera, uma mãozinha de amêndoas, uma mãozinha de sementes de linhaça, uma alperce seca (tipo passa, para dar doce), um belo molho de espinafres fresquinhos e canela. Tudo processado na Bimby e pumba!
O caixote dos gatos estava um bocado mal cheiroso porque estivemos uns dias sem areia nova para substituir. A logística das compras destes dias é para nós (6 em casa) um desafio. Então, logo depois do pequeno-almoço fui lavar o caixote, despejar tudo no lixo, varrer e lavar o chão, lavar o caixote propriamente dito e colocar areia nova.

A minha senhoria (apetecia-me insultá-la com um epíteto qualquer relacionado com a agro pecuária, mas vou respirar fundo e manter o nível) decidiu, ainda umas semanas antes desta quarentena começar, reabilitar o andar que existe debaixo da nossa casa. Com isso, deram-nos cabo da horta que tínhamos no quintal, obrigaram-nos a libertar a garagem quase de um dia para o outro (agora, a minha mota dorme na rua), e tem-nos brindado com concertos de heavy metal desde que esta quarentena se iniciou. Se eu tivesse mesmo que trabalhar a partir de casa, ser-me-ia impossível fazer um telefonema ou fazer uma reunião por skype. À hora a que eu limpava o caixote dos gatos, e eu sou sempre o primeiro a levantar-me cá em casa, já as máquinas faziam tremer os meus pés e destruíam os meus tímpanos sem contemplações.

O Matias acha piada (div'tido) brincar com as peças do dominó. Fazemos aqueles arranjos em que quando uma peça tomba, tombam todas, ou torres como a que se vê na foto lá em cima.

Depois fui correr um bocado, fui à Peninha e a Adrenunes. Há quem ache que não devemos sair da casa para correr, mas como já disse anteriormente, preciso disso como de ar para respirar. Ainda ontem li um artigo, cuja referência não guardei, no qual se dizia que é importante correr porque isso evita o nosso colapso psicológico e reforça o sistema imunitário, desde que seja feito com bom-senso.

As nossas refeições têm-se adaptado a estes tempos complicados. De início estava toda a gente a comer muito e fazíamos almoço e jantar cozinhados. Com o tempo fomos voltando ao que é mais habitual na vida dos rapazes em homeschooling que é comermos apenas uma refeição cozinhada e a outra ser "sopa e coisas". Eu tenho cozinhado muito mais do que é costume, uma vez que agora estou sempre por cá. Os putos têm dito que lhes dou petiscos melhores do que os da mãe :-)
Talvez seja só porque é diferente.

Um dos meus escapes nestes dias, que já vem de há muito tempo, é ver uns vídeos ligados à vela de cruzeiro. Hoje, o Youtube propôs-me uma visita guiada a um dos mais fantásticos barcos que se desenharam nos últimos anos: Garcia Exploration 45



Boa quarentena, amanhã é fim-de-semana, pelo que não vou ter aqui as máquinas demolidoras do nosso sossego. Aleluia!

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Diário da Quarentena - Dia 15

>> quinta-feira, março 26, 2020


Quinta dos Sete Nomes, Colares, 26 de Março de 2020.

Ontem, entre as 19:00h e as 20:15h estive em directo no Éter, pela mão do Ricardo Mariano, o autor do programa Vidro Azul, da SBSR, do qual sou adepto de longa data. O programa chama-se "Radio Call" e reúne 2 ouvintes habituais da SBSR e um participante surpresa. Curiosamente, ontem mesmo, tropecei num diário que fiz no início da minha estadia na Terceira (entre 2010 e 2012), o qual, no dia 16 de Janeiro de 2010 começava com a nota "A ouvir o Vidro Azul na Radar online". Sou, portanto, ouvinte daquele programa há mais de 10 anos.

No momento em que escrevo estas linhas (são 17:17h), tenho a SBSR nos ouvidos e estou a ser servido do fabuloso "Tomorrow Never Knows", um original dos Beatles, aqui interpretado com a energia de um vulcão pelos incríveis Chameleons, uma das minhas escolhas do programa de ontem. Isto anda tudo ligado :-)



Seguindo as coincidências, o meu dia de hoje começou com a leitura de um poema publicado pelo Ricardo Mariano (o mesmo suspeito), no seu Facebook:

FORA DO LUGAR

A dor é uma desordem inimiga
das palavras com o silêncio todo fora
do lugar. Saberemos tomar um caminho
por essa floresta escura? Poderemos
sequer recuperar a pequena bússola partida,
a caneta e o papel, as nossas certezas
de trazer no bolso?

Não nos avisaram contra o medo,
não nos disseram que pode chegar
a qualquer hora, deslealmente,
enquanto o sol dorme na paisagem e as ervas
se levantam para receber o Verão. E agora
que quase nos perdemos, sem mapa ou sentido
que nos sirva, o nosso único guia é o amor
dos que nos esperam numa sala branca
onde o chão nos falta e não há estações.

Rui Pires Cabral, Periférica, n.º 6, Vila Pouca de Aguiar, 2003

Bem a propósito do que escrevi na entrada anterior, vem esta crónica de Fernando Alves, nos habituais "Sinais", da TSF.
Nem sempre conhecemos a história toda. Talvez devêssemos evitar ser Calígulas de Varanda.

Finalmente, deixo aqui uma série de fotos que fizémos num passeio ao Monte Rodel há uns dias, quando ainda se podia "apanhar ar".















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Diário da Quarentena - Dia 14

>> quarta-feira, março 25, 2020


Matias, brincando com o Infinito.

Tenho lido vários posts e comentários nas redes sociais que condenam a prática da corrida neste período de quarentena obrigatória. Deixo aqui algumas notas e reflexões sobre o tema:

1 - Eu corro quase diariamente há mais de 15 anos. É um hábito que entrou devagarinho, como todos os hábitos – os bons e os maus – e se instalou de uma forma que acredito que seja difícil de compreender para algumas pessoas. Se me disserem num dia que só tenho tempo ou para correr ou para almoçar, eu escolho correr. Não digo que escolhesse sempre correr em lugar de comer, mas sou bem capaz de saltar uma refeição se for essa a única forma de ir correr nesse dia. O que quero dizer é que, por estranho que possa parecer a quem não corre, a corrida é-me quase vital. Correr está numa camada da minha pirâmide de Maslow logo acima de comer e respirar, e seguramente abaixo da ligação ao wifi.
Mas não são só os não corredores que criticam esse “luxo”, também me tenho sentido criticado por quem corre, por quem sabe bem o que significa correr para quem está “viciado”, e para isso eu tenho uma outra explicação (mais adiante).
No caso de quem não corre, é fácil perceber que considerem desadequado correr o mais remoto risco (arriscando igualmente o contágio de outrem), por um hábito que consideram uma futilidade. A única coisa que lhes posso dizer é que correr diariamente, para mim, é mesmo importante. Se não fosse, não sairia de casa para o fazer numa altura destas, até porque não me custa assim tanto estar em casa.

2 – Moro numa aldeia da zona rural de Sintra. Consigo sair de casa, enfiar-me na Serra, correr durante 50 minutos ou uma hora e não me cruzar com mais de 10 pessoas no total, nunca a menos de 3 metros de distância (aliás, por estes dias, nota-se bem o esforço que as pessoas fazem por se afastarem quando se cruzam nos caminhos). Francamente, a probabilidade de me contaminar ou contaminar outrem com o raio do bicho nesta minha actividade é absolutamente residual.

3 – Têm-me dito que uma das razões para não ir correr é a possibilidade de ter um acidente e precisar de assistência médica, comprometendo a disponibilidade desse recurso actualmente escasso para quem mais precisa dele. Sou sensível a esse argumento, mas uma vez mais recorro à probabilidade de tal acontecer: corro há mais de 15 anos, maioritariamente em trilhos, faço inúmeras provas por ano, e nunca tive mais do que uns riscos nos cromados, não me parece que deva privar-me desta necessidade por esse motivo, sinceramente.

4 – Também percebo que, para quem não tem o privilégio de poder correr em lugares onde NUNCA há ninguém (não estão vazios por as outras pessoas estarem de quarentena), é um bocado irritante saber que há quem ande a correr alegremente. Essas pessoas devem lembrar-se que há inúmeras outras vantagens que têm por morar em zonas urbanas que eu não tenho por morar no campo. São escolhas.

5 – Finalmente, a reflexão que mais me interessa, e que talvez justifique porque é que mesmo quem gosta de correr preferia ver-me em casa fechado.
Foi publicado há dias o testemunho de um famoso corredor Espanhol que diz que, apesar de poder correr sem se cruzar com ninguém, não o faz para dar o exemplo e por respeito para com os mais velhos e para com o pessoal da linha da frente (a quem aproveito para tirar aqui o meu chapéu). A mim parece-me absurdo que uma pessoa se sacrifique por respeito seja ao que for, se isso não contribuir de facto em nada para solucionar o problema. É como as velhas que vão sofrer de joelhos para Fátima, é inútil, só serve para si próprias.
Isto remete para uma ideia mais vasta que tenho sentido que está por trás de muitos posts das redes sociais destes dias, embora de forma totalmente inconsciente, que é a velha noção Judaico-Cristã de que para merecermos de novo o que tínhamos antes teremos que sofrer, teremos que aceitar o castigo.

O Deepak Chopra fala muito desse conceito que temos gravado no nosso subconsciente colectivo: a ideia de que se não sofrermos não merecemos nada de bom. A isso podemos juntar a ideia que também me parece estar muito presente nalgumas intervenções de que a COVID-19 é um castigo divino ou do Universo ou da Terra ou lá de quem seja e que, a menos que aceitemos ficar ali no canto com orelhas de burro, jamais o mundo será abençoado com o fim desta praga. Julgo que muitas das pessoas que criticam fortemente quem não se auto-castiga estão incomodadas com essa possibilidade. Precisam de um cordeiro de Deus que tire o pecado do mundo e a minha corrida fá-los temer que os Deuses não estejam contentes.
A este propósito, recomendo o texto recente do Rui Zink aqui.

6 – Claro que as saídas de cada pessoa de casa têm que ser feitas com bom-senso. O texto que anda por aí a circular sobre um tal Aníbal (curioso nome) que passa todo o dia na rua com o pretexto de que está sempre a fazer coisas que são autorizadas na lei é totalmente absurdo e uma forma infantil de pretender culpar os outros. Embora nos últimos 14 dias só tenhamos utilizado o carro para ir ao supermercado, houve uma ocasião em que fomos com os miúdos a um lugar da Serra onde íamos com alguma frequência, para os deixar caminhar um pouco no meio do bosque. Quando chegámos, verificámos que havia lá mais gente. Nem estacionámos, demos meia-volta ao carro e voltámos para trás. Uma ou duas pessoas a correrem na marginal de Espinho é seguro, 30 já não é. Não tenho nenhuma sugestão para regular isto além do simples e natural bom-senso.
Tenciono manter-me a correr até que haja alguma proibição em contrário (espero que não haja), mas isso não quer dizer que não respeite o imenso sacrifício que muita gente está a fazer no momento em que corro. Como já disse, tiro o meu chapéu a todos os que na linha da frente estão cara a cara com o malvado do bicho, mas, sejamos honestos, a minha corrida, por muito prazer que me dê, não complica em nada o vosso trabalho.
Já agora, eu estou no grupo dos mais ansiosos para que tudo isto passe, já que com uma pontaria certeira me despedi do emprego anterior no final de Fevereiro, estando neste momento em casa com 4 filhos e a mulher e sem ordenado, a subsistir de umas poupanças não renováveis até que possa começar o novo projecto profissional que ficou congelado até nova ordem. Nem tudo na vida de quem corre pelo mato são flores.

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Diário da Quarentena - Dia 13

>> terça-feira, março 24, 2020



Vou publicar a partir de hoje uma espécie de Diário da Quarentena. Publicarei coisas soltas, fotos, cantigas, filmes, referências externas, pensamentos e reflexões. Gostava que fosse mesmo uma espécie de diário, como se fosse em papel. Veremos o que acontece.

Por hoje, e como já é tarde, ficamos apenas com esta foto do Matias, feita há dias aqui na Serra, quando ainda podíamos sair de casa por motivos lúdicos.
Se vos der jeito, vão passando por cá. A ver se animo aqui o estaminé (justamente agora que os restantes estão fechados).

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Um poema perdido na infância

Há uns meses contei esta história no Facebook, mas queria guardá-la no Arrumário para me ser mais fácil encontrá-la no futuro.

Quando era miúdo, há mais de 40 anos atrás, passava temporadas na casa da minha avó (e do meu avô), em Campo de Ourique. Numa dada ocasião gravei numa cassete (coisa que os miúdos hoje não sabem o que é) um poema declamado na rádio. Posteriormente, ouvi essa gravação uma boa quantidade de vezes e acabei por decorar a quase totalidade do poema. Nunca soube quem poderia ser o seu autor. Entretanto, muitos anos depois, apareceu a Internet, e eu fui sempre procurando partes daquele poema que tinha na memória, como quem procura a chave para um portal de acesso à infância. Nunca encontrei uma referência ao poema até há poucos dias.
De repente, na sequência de mais uma busca, saltou-me para o ecrã o nome do poeta: Eugénio de Andrade. Caramba, agora havia de dar com a totalidade do poema.
Investiguei mais um bocado e acabei por comprar o livro "Poesia" do Eugénio de Andrade, que, de resto, tem muito mais do que aquele poema para justificar o investimento.
Aqui fica o que tinha gravado naquela velha cassete, que teria hoje mais de 40 anos:

"É quando o cheiro seminal da sombra anuncia o rasto das cobras que nos aproximamos do mar. Temos um corpo inclinado para o sol, em declínio, é certo, mas que não abandonaremos à voracidade dos porcos, numa terra onde a própria poeira respira com dificuldade. Não tardarão as chuvas, dizem, e poderíamos responder que sempre as chuvas têm sido mais propícias aos olhos amarelos das aves de rapina do que às bagas do loureiro, quase de vidro. Mas antes teremos descido às águas.
(...)
Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me lentamente a mão direita. A noite chegava com seus antiquíssimos mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem desejos de outro corpo estendido ao lado? Já não me lembro, passava os dias a dormir à sombra daquela árvore, era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia; como se tivesse sede."

É um poema magnífico e encerra uma procura com mais de 40 anos. Sinto magia nestas palavras.

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