Um poema perdido na infância

>> terça-feira, março 24, 2020

Há uns meses contei esta história no Facebook, mas queria guardá-la no Arrumário para me ser mais fácil encontrá-la no futuro.

Quando era miúdo, há mais de 40 anos atrás, passava temporadas na casa da minha avó (e do meu avô), em Campo de Ourique. Numa dada ocasião gravei numa cassete (coisa que os miúdos hoje não sabem o que é) um poema declamado na rádio. Posteriormente, ouvi essa gravação uma boa quantidade de vezes e acabei por decorar a quase totalidade do poema. Nunca soube quem poderia ser o seu autor. Entretanto, muitos anos depois, apareceu a Internet, e eu fui sempre procurando partes daquele poema que tinha na memória, como quem procura a chave para um portal de acesso à infância. Nunca encontrei uma referência ao poema até há poucos dias.
De repente, na sequência de mais uma busca, saltou-me para o ecrã o nome do poeta: Eugénio de Andrade. Caramba, agora havia de dar com a totalidade do poema.
Investiguei mais um bocado e acabei por comprar o livro "Poesia" do Eugénio de Andrade, que, de resto, tem muito mais do que aquele poema para justificar o investimento.
Aqui fica o que tinha gravado naquela velha cassete, que teria hoje mais de 40 anos:

"É quando o cheiro seminal da sombra anuncia o rasto das cobras que nos aproximamos do mar. Temos um corpo inclinado para o sol, em declínio, é certo, mas que não abandonaremos à voracidade dos porcos, numa terra onde a própria poeira respira com dificuldade. Não tardarão as chuvas, dizem, e poderíamos responder que sempre as chuvas têm sido mais propícias aos olhos amarelos das aves de rapina do que às bagas do loureiro, quase de vidro. Mas antes teremos descido às águas.
(...)
Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me lentamente a mão direita. A noite chegava com seus antiquíssimos mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem desejos de outro corpo estendido ao lado? Já não me lembro, passava os dias a dormir à sombra daquela árvore, era o último verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria, uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia; como se tivesse sede."

É um poema magnífico e encerra uma procura com mais de 40 anos. Sinto magia nestas palavras.

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