A emergência criativa

>> sexta-feira, outubro 30, 2015



Há 20 anos atrás (mais coisa, menos coisa) li um romance de que gostei muito: "O Inverno em Lisboa" de Antonio Muñoz Molina. Há pouco tempo tropecei num outro romance do mesmo autor - "Como la Sombra que se va" - na língua original, e comprei-o para o ler. Este último fala do percurso que o assassino de Martin Luther King terá feito em Lisboa, em 1968, quando andava fugido. E também fala do autor de um romance chamado "O Inverno em Lisboa", que terá vindo a Lisboa em meados dos anos 80 para se documentar para a escrita desse livro.
Por essa razão, acabei por interromper a leitura do novo livro e mergulhei de novo no outro.
Está a ser uma experiência narrativa absolutamente apaixonante. A pessoa que eu sou hoje ao ler o livro que li há quase duas décadas não é a mesma. Delicio-me a cada página com as diferentes leituras que faço, demonstração evidente de como a mundividência nos vai transformando. Visito partes de mim que sei que não procuro visitar, que estão na sombra, limpo-lhes o pó. Tem sido um exercício agitado de análises e balanços.
A dois dias de virar meio século, começo finalmente a perder cautelas e a revelar-me mais completo. Como diria a minha avó: "já não perco casamento".
Trago-vos hoje este pedaço d'O Inverno em Lisboa:

Olhando para o quadro que ilustra esta conversa toda, diz o autor:
"Biralbo disse-me que olhar para aquele quadro era como ouvir uma música muito próxima do silêncio, como ser possuído lentamente pela melancolia da felicidade. Compreendeu de repente que era assim que ele devia tocar piano, como aquele homem tinha pintado: com gratidão e pudor, com sabedoria e inocência, como se soubesse tudo e tudo ignorasse, com a delicadeza e o medo que temos quando nos atrevemos pela primeira vez a uma carícia, uma palavra necessária. As cores, diluídas na água ou na distância, desenhavam no espaço branco uma montanha violeta, um campo de leves manchas verdes que pareciam árvores ou sombras de árvores, na penumbra de uma tarde de Verão, um caminho perdendo-se até às colinas, uma casa baixa e sozinha com uma janela esboçada, uma avenida com árvores que quase a ocultavam, como se alguém tivesse escolhido viver ali para se esconder, para olhar sozinho o cimo da montanha violeta."

No capítulo seguinte remata:
"Como algumas vezes o amor e quase sempre a música, aquela pintura fazia compreender a possibilidade moral de uma estranha e inflexível justiça, de uma ordem quase sempre secreta que modulava o acaso e tornava habitável o mundo e não era deste mundo. Algo sagrado e hermético e ao mesmo tempo quotidiano e diluído no ar, como a música de Billy Swann quando tocava o seu trompete num tom tão baixo que o seu som se perdia no silêncio, como a luz ocre, rosada e cinzenta dos fins de tarde em Lisboa: a sensação não de decifrar o sentido da música ou as manchas de cor ou o mistério imóvel da luz, mas de ser entendido e aceite por eles."

É uma das mais belas descrições que tenho lido da emergência criativa, daquilo que nos faz divinos, da paixão com que podemos olhar para o mundo.

Bateu.


6 comments:

Rui Silva 10/30/2015 10:15 da manhã  

Pois bateu. Vou ali comprar o romance (os romances) e já venho. :)

Álex 10/30/2015 10:20 da manhã  

tenho que relê-lo também!

Sandra Ramos 10/30/2015 11:26 da manhã  

Hummm... Belo! Grata pela partilha

Sandra Ramos 10/30/2015 11:26 da manhã  

Hummm... Belo! Grata pela partilha

Anónimo,  12/01/2015 4:51 da tarde  

Muito interessantes as suas conjeturas.
Como diz, as releituras mostram-nos mais de nós próprios do que das obras.
Os livros são de muito boa prosa, o quadro de muita arte e você de muito boa cepa.
MJ

Zé Maria 12/01/2015 8:45 da tarde  

Cara(o) MJ,
Achei piada ao seu comentário, não quer "desanonimar-se"?
Se preferir, o meu e-mail é zm.sintra@gmail.com
ZM

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