No seguimento do post anterior, aqui fica a segunda parte da nossa aventura em terras de nuestros hermanos, sob um intenso manto de neve.
Tínhamos decidido que, acontecesse o que acontecesse, íamos tentar conhecer os 3 Hermanitos mais de perto. Trata-se de 3 agulhas de rocha que se encontram no alto da crista que circunda todo o Circo de Gredos, bastante perto do refugio.
A foto que se apresenta foi tirada no último dia (Terça-feira), que foi o único em que vislumbrámos o Sol:
Assim, preparámos o equipamento, vestimos os escafandros e começámos a navegar num mar de neve a caminho da crista.
A neve era tanta que houve partes do caminho em que ficámos enterrados até ao peito! Entretanto lá nos fomos aproximando do corredor que dá acesso à base das agulhas e fomos ganhando altura. A dado momento, já desesperados com tanta neve por cima e por baixo, parámos uns breves instantes para recuperar calorias e baixar o ritmo cardíaco. Limpei a tampa da mochila para tirar a água lá de dentro, mas não tive grande sucesso porque a garrafa tinha o gargalo congelado, pelo que não podia beber grande coisa. Lá comemos umas bolachas e ao fim de apenas alguns minutos já tinha a mochila coberta de neve. Estava mesmo a nevar muito. Quando arrancámos de novo, deu-me uma fúria e comecei a acelerar pelo corredor acima. Foi aí que tomei esta imagem do Daniel, que seguia as minhas pisadas:
No alto deste corredor, sentei-me numa pequena cornija, encostado a um calhau e esperei que o Daniel chegasse ao pé de mim.
Trocámos ideias sobre o que fazer em seguida, mas embora o meu parceiro de aventura estivesse interessado em tentar trepar rocha, eu não me deixei convencer. Recusei-me a abrir a mochila sob aquele nevão inclemente. Ainda fizemos umas breves incursões até junto do Hermanito da direita, mas acabámos por tomar a decisão correcta que foi a de abandonarmos o local. É impressionante a velocidade com que descemos, comparando com o tempo que levámos a subir.
Quando já estávamos de novo na parte baixa do Circo, dirigimo-nos a uma pequena cascata de gelo, onde estivemos, uma vez mais, a praticar boulder no gelo.
Depois montámos uma corda numa cascata maior que estava lá perto e estivemos a praticar escalada no gelo, com a corda por cima. Infelizmente não tirei fotos da reunião que fizemos para nos pendurarmos, mas eram apenas 2 parafusos cravados no gelo, unidos por uma fita. Um luxo!
Depois desta sessão de escalada em gelo, arrumámos as botas e fomos para dentro do refúgio esperar pelo jantar.
Agora perguntam alguns dos leitores: Afinal que história é essa de refúgio?
Um refúgio de montanha é um conceito que a maior parte dos portugueses ignoram, pelo simples facto de não haver cá nenhum. Em Portugal, a montanha mais alta que temos é, como sabem, a Serra da Estrela, mas chega-se lá acima de autocarro e o que encontramos lá no alto são hordas de labregos a fazerem skú, queijo flamengo disfarçado de queijo da Serra e muito lixo. Para evitar esse cenário, os países civilizados, com tradição de montanha, não fazem estradas para esses locais. Para lá chegar é necessário percorrer longos percursos, pelo meio da montanha, levando às costas tudo o que vamos precisar. Os refúgios são casas construídas em locais remotos, que servem de quartel-general a quem pretenda praticar actividades nas suas imediações.
Em geral não têm água quente, muito menos duche. Apesar de terem um serviço de refeições (reservadas previamente), não é possível pedir um bocadillo de queso nem Coca-cola. Os refúgios são abastecidos por mulas e, poucas vezes por ano, com helicóptero, para levarem combustível, detergentes, etc.
Quando entramos num refúgio destes, temos à porta uma série de pequenos compartimentos onde teremos que deixar o nosso calçado. No meu caso, tiro a carcaça das botas e fico com o botim interior, mas o normal é calçar umas socas de borracha, que são fornecidas pelo refúgio.
Lá dentro existem cacifos para guardar as mochilas, já que estas não podem ser levadas para os dormitórios, para se evitar excesso de entropia. Existe uma cozinha para quem queira preparar as suas próprias refeições, mas cada uma leva o seu fogão. De resto há uma sala grande, onde toda a gente come e os dormitórios onde se encontram plataformas corridas, com colchões, onde cada um estende o seu saco-cama. Há sempre sinfonia de ressonanço, mas eu costumo chegar à cama tão cansado, que isso não me impede de dormir. Os dormitórios só estão abertos à noite. Quem quiser dormir uma soneca a meio do dia deve optar pelo Club Med.
Os WC são outra parte divertida da coisa. A água das torneiras, nesta altura, estava tão fria que congelava se parasse de correr. Assim, as torneiras estão afinadas de forma a nunca estarem fechadas, caso contrário têm que ir descongelá-las de maçarico (não estou a brincar, é mesmo assim que funciona). A bem dizer não são utilizadas para mais nada senão para lavar os dentes e mesmo isso é um valente sacrifício.
Além disso, nos refúgios não há caixote do lixo. O lixo não nasce lá, por isso quem o leva para cima trá-lo de volta para baixo. Só não trazemos de volta o papel higiénico usado!
A coisa mais próxima que existe de um banho, naqueles locais, no Inverno, é um pacote de Dodots. Esfregamos com toalhetes todas as partes que tivermos a coragem de expor ao ar livre e guardamos todos os toalhetes utilizados no saquinho do lixo que traremos de volta.
Finalmente, se nos fartarmos de lá estar, temos que caminhar pelos menos 2 horas e meia até chegarmos ao carro.
Muitos perguntarão:
- Mas por que raio de motivo alguém se presta a tanto sacrifício?
Este é o preço a pagar por quem pretenda estar naquelas montanhas. O que lá vemos e as coisas que fazemos valem TOTALMENTE o que se perde em conforto. E isso, em última análise, aproxima muito as pessoas que partilham essa escolha. Também por isso, nos sentimos particularmente irmanados com o grupo do Fundão.
No último jantar que partilhámos - pescado con patatas - abrimos 2 garrafas de vinho. O sabor do vinho naquelas paragens é algo de divinal. O efeito dos vapores etilicos é multiplicado pela altitude, pelo que acabámos a noite mais divertidos que nunca, a jogar esse intelectualíssimo jogo que dá pelo nome de Uno. Uma das garrafas de vinho foi oferecida pelo Óscar, um dos guardas do refúgio. Aqui fica o nosso sincero agradecimento.
No último dia da nossa estada em Gredos, abriu-se finalmente a cortina de nuvens que nos envolvera até então. Junto ao refúgio tomei esta imagem, onde se vêem as indicações para alguns dos cumes das imediações, bem como o Ameal Del Pablo em segundo plano. É a elevação bicuda que se vê mais à esquerda.
Eu e o Daniel fomos os primeiros a sair do refúgio. Fomos nós quem abriu a huela que todos os outros seguiriam. Muitas vezes andámos enterrados em neve até aos joelhos. Como íamos bastante carregados e a abrir caminho fomos rapidamente apanhados pelos que nos seguiram. Entretanto fui-me dedicando a guardar mais algumas imagens:
Chegados aos Barrerones, o ponto mais alto da marcha para o carro, tirámos a foto de grupo que aqui se mostra:
Aqui temos a mesma ponte que aparece no inicio do post anterior, só que agora coberta de neve e cheia de Fundenses lá em cima:
Chegados aos carros, restava-nos a aventura de os fazer chegar a uma estrada de alcatrão em que não andássemos a dançar sobre a neve. Felizmente a Sara tinha um Land Rover, mas acabou por não ser necessário, já que após 2 atascanços passou o limpa-neves e pudemos chegar a Hoyos.
Claro que fomos comer o famoso bocadillo con queso empurrado a Coca-cola. Está visto que sou viciado, não?
Depois de 4 dias sem banho, a penar pela montanha como mulas, mas cheios de calor por dentro, por termos partilhado estes momentos com gente tão divertida, ainda nos faltava mais uma surpresa: uma armadilha da policia espanhola que nos custou 63 Euros de multa paga na hora!
O balanço final, mesmo com este extra, foi francamente positivo. Não vemos a hora de voltarmos a encontrar esta turma para apresentarmos os slides do Daniel. Parece que lá para o Fundão há uma tal Pizzaria Veneza que já está a acumular lenha e sacos de farinha para serem consumidos nesse encontro. Vai tudo a pé para casa, que o novo código da estrada não perdoa.
Esperamos ansiosamente esse dia.
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