Como já vem sendo tradição, este Carnaval voltei ao circo de Gredos. As previsões meteorológicas não eram muito optimistas, mas decidimos ir refrescar as ideias mesmo assim.
O refúgio onde ficaríamos dista habitualmente cerca de duas horas e meia do local onde se deixam os carros. Desta vez, devido à intensa queda de neve, ao final de algumas horas de dura caminhada acabámos por concluir (acertadamente) que não tínhamos condições para chegar ao tão ansiado refúgio. Assim, regressámos ao ponto de partida e fomos procurar local para dormir. O esforço da longa marcha a subir sobre um espesso manto de neve tinha-me deixado tão fatigado que dormi o verdadeiro sono dos justos.
No dia seguinte (Domingo) alugámos raquetes de neve e voltámos a iniciar a caminhada em direcção ao refúgio de Elola, em pleno circo de Gredos. Senti-me um verdadeiro esquimó ao caminhar pela primeira vez sobre a neve fofa com o auxílio das raquetes. É bem mais fácil e divertido do que pensava.
Encontrámos alguns grupos de pessoas que desciam devido ao mau tempo, como tínhamos feito no dia anterior. Quem não tinha raquetes, mais cedo ou mais tarde dava a volta para trás. Já perto da parte mais alta do percurso, tentámos em vão recolher dados de um PDA emprestado para utilizar num GPS de um grupo de Pamplona. A tarefa revelou-se impossível de realizar e o vento gelado quase nos transformou em estátuas de gelo. O tal grupo de Pamplona deu a volta e nós decidimos arriscar a travessia, entre muita neve, muito vento e muita bruma.
Quase fizemos uma festa quando avistámos a placa que nos indicava o final da travessia dos Barrerones, a zona mais exposta do percurso. Faltava-nos ainda uma grande parte do caminho, com algum risco de nos perdermos, mas os nossos experientes guias levaram-nos a bom porto e foi com grande emoção que finalmente atingimos o refúgio. Julgo que teremos sido os únicos a fazê-lo naquele dia.
No dia seguinte, acordámos sob um espesso manto de nevoeiro, que se foi dissipando às primeiras horas, dando lugar a um dos mais belos dias que vivi numa montanha. Havia neve por todo o lado, mas finalmente o céu estava azul, sem um único farrapinho de nuvem.
Estávamos à porta do refúgio a celebrar o bom tempo quando vemos um vulto a deslocar-se na nossa direcção. Tratava-se de um conhecido do guarda do refúgio, que tinha sido surpreendido pelo temporal do dia anterior e que, apesar de conhecer bem o local, se tinha perdido, acabando por dormir ao relento, sozinho e sem qualquer fonte de luz!
Parecia um sobrevivente de um massacre. Chegou ao refúgio com a expressão de um afogado resgatado das ondas.
Nessa altura já estávamos sozinhos no refúgio, depois de um outro grupo que lá se encontrava ter decidido regressar, provavelmente com receio de mais temporal.
Pela nossa parte, fomos para uma pequena cascata gelada dar uso às ferramentas de escalada no gelo. Escalei pela primeira vez na vida uma cascata à frente da corda, a proteger-me com parafusos de gelo. Fiquei viciado, mas deu para ver que estou muito verdinho nesta actividade. Aqui, ao contrário do que acontece na rocha, não convém muito cair. As protecções colocadas no gelo são um bocado temperamentais e as ferramentas que temos nas mão e nos pés não são muito compatíveis com a dinâmica da queda.
Mais tarde tentaria uma outra cascata, já mais a sério, e pela segunda vez num curto espaço de tempo, fui forçado a voltar humildemente para trás por falta de coragem para avançar.
Escalar sobre gelo é uma actividade perigosa, mas muito, muito viciante.
Poderão achar estranho, mas uma sucessão de coincidências fez com que nenhum de nós os seis levasse uma máquina fotográfica para o refúgio, pelo que apenas disponho destas três singelas fotos, tiradas muito longe dali, que dão um aspecto da quantidade de neve que por lá havia.
No dia seguinte, regressámos ao carro pelo caminho mais longo, para gozarmos a paisagem e o bom tempo. Fizemos um percurso algo mais cansativo, mas valeu bem pela vista que pudemos apreciar das montanhas em redor.
Às vezes sinto-me um bocado como se fosse um madrileno viciado em surf. Regresso das montanhas e já só penso na próxima vez que puder voltar.
Já dizia o Variações: "só estou bem aonde não estou".
Enquanto almoçávamos, mesmo antes de regressarmos a casa, a televisão transmitia um especial sobre o Carnaval no Brasil. Nós tinhamos estado nos antípodas desta forma de viver o Carnaval. Desde a temperatura à euforia tudo estava no pólo oposto. Senti-me um ermita largado numa pista de dança de uma discoteca nova-iorquina.
Não consigo deixar de preferir a nobreza das montanhas ao hedonismo destes Carnavais, mas isso são cá coisas minhas.
ZM
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