Na Sexta-feira passada, pelas sete da tarde, com alguma apreensão, puxava uma corda que faz tocar o sino na fachada nascente da Casa do Cipreste, em Sintra. Tive a imensa honra de ser convidado para jantar pelo actual proprietário da casa, Martinho Pimentel, bisneto do genial arquitecto Raúl Lino. A razão da estranheza era o facto de apenas nos "conhecermos" por e-mail. O convite prendia-se com os textos publicados neste blog sobre o autor do projecto e sobre a casa.
O sino ecoou na tranquilidade daquela rua de S. Pedro, surpreendendo-nos com a amplitude da sua reverberação. Era o toque de entrada numa noite que hoje me parece ter-se passado noutra dimensão.
Martinho foi um anfitrião dedicado, muito simpático, que nos conduziu pelo serão como se fosse aquela a sua profissão. A enorme casa estava confortavelmente aquecida, como se esperasse nobres para o jantar. Começamos por nos sentar um pouco na belíssima sala de estar, muito confortável, onde junto à lareira quebramos o gelo.
Martinho mora sozinho na Casa do Cipreste, mas dir-se-ia que havia um séquito de empregados, com sapatos de lã, que invisíveis iam tomando conta de tudo, para que nada falhasse na produção de um serão cinematográfico.
Quando a conversa já estava mais solta fomos conhecer a cozinha onde Martinho prepararia o jantar. Enquanto o arroz cozinhava demos uma volta por toda a casa. O que já conhecia da Casa do Cipreste – e não era pouco – revelou-se nada. Esta é seguramente a mais integrada no terreno de todas as casas que conheço de Raul Lino. Todo o desenho é de uma harmonia espantosa. A casa enrosca-se em torno dos restos de uma antiga pedreira, num abraço orgânico, que cria uma simbiose perfeita com o terreno. Não nos foi possível apreciá-la com a luz do dia (talvez noutra ocasião), mas os recortes de noite que pudemos vislumbrar pelas janelas demonstram que o arquitecto sabia onde as queria colocar. Eu, que sou um apreciador de grandes áreas vidradas, entendi pela primeira vez a importância dos enquadramentos da paisagem por janelas criteriosamente colocadas. A distribuição é labiríntica, mas surpreendentemente funcional e harmoniosa. Os espaços ligam-se por inúmeras portas, degraus e escadarias, que fazem a casa parecer um organismo vivo, cheio de ar, como se respirasse. Os pequenos espaços e recantos fazem sentir que há mais gente por ali. Posso estar enganado, mas acho que percebo porque é que Martinho tem tanto gosto em receber. Toda a atmosfera convida à presença de pessoas. Talvez a Casa do Cipreste tenha por vezes alguma fome de gente.
Fomos percorrendo as diversas divisões, apreciando as fotografias da noite pelos óculos das janelas. Cada uma, uma obra de arte.
Finalmente, já completamente engolidos por um edifício com 90 anos de vida, regressámos à cozinha. A pedido da pequena Madalena, que não gosta do escuro, Martinho “acendeu” as luzes da sala de jantar. Porquê as aspas? Porque a sala não tem luz eléctrica. Num pormenor de requintado bom gosto, a luz eléctrica foi proibida de entrar na sala onde se come. De resto, as velas (18 se não me engano) fornecem uma iluminação doce, que eu ignorava. Um outro pormenor desta sala é o seu comportamento acústico. Há locais precisos em que quando falamos sentimos um outro eu a falar-nos ao ouvido. Somos totalmente surpreendidos com o som da nossa voz atrás da cabeça. É uma sala concebida para se conversar, mas uma pessoa de cada vez e baixinho. Mais uma vez, a vista para o Paço Real da Vila é monumental, passe o pleonasmo.
Martinho transpira uma tranquilidade contagiante. Jantar por ali é um exercício de relaxamento. O jantar apareceu feito, entre conversa e visita guiada, sem que déssemos por isso, sem stress, como se uma talentosa cozinheira que não conseguíamos ver tivesse calmamente dado conta do recado.
Até a sobremesa, umas deliciosas maçãs assadas, temperadas com vinho do Porto e passas, apareceu feita no final do repasto, sem que percebêssemos qualquer agitação.
Depois voltámos à sala de estar, onde o lume, cuidado pelo mordomo que não vimos, ardia vigorosamente, tornando a atmosfera muito agradável.
Esta sala que fica no andar de entrada da casa, o mais alto, é na fachada poente um baluarte sobre a paisagem, um convite à contemplação, protegido pela altura a que se encontra. É um salão enorme, cujo chão de tábuas corridas tem as mais longas tábuas de soalho que vi na vida. As tábuas percorrem todo o comprimento da sala, sem qualquer costura pelo meio (talvez 10 metros, as mais longas). Também neste compartimento houve um cuidado especial no seu comportamento acústico. Aqui não há ecos, parecendo, quando falamos, que a sala é mais pequena do que é de facto.
Até aqui não falei dos azulejos, um material muito utilizado na arquitectura Raul Lino. A Casa do Cipreste não é excepção, tendo muitas zonas decoradas com azulejos que lhe dão uma atmosfera realmente assinada. Muitos objectos desta casa têm o já célebre símbolo do Cipreste, de azulejos a cortinados, passando por candeeiros e panos do pó.
Ainda tivemos tempo de dar uma curta vista de olhos a uma parte do jardim. Todo este percurso pela parte de baixo da casa é uma viagem labiríntica, que nos faz percorrer em corredores e escadas caminhos que estariam desenhados nos rochedos.
É espantoso como foi possível projectar esta casa antes de ter ferramentas informáticas de ajuda ao desenho.
Um elemento com uma presença muito forte é a água. O átrio central, que liga os quartos, a entrada, as duas salas, e uma das escadas para o andar de baixo, tem uma pequena fonte, onde pinga sem cessar um fio de água. O canto desta fonte espalha-se por todo o espaço e faz verdadeiramente sentir que a casa vive. Também no jardim a água se faz notar, num lago que reflecte a fachada poente da casa, fazendo-a parecer maior, vista daí.
Quando finalmente abandonámos a casa, fiquei com a estranha sensação de ter estado noutra dimensão. Uma casa com 90 anos tem necessariamente uma vibração e uma energia especiais, adquiridas ao longo de várias gerações de habitantes. Esta particularmente tem vários factores que amplificam essas energias: continua propriedade de descendentes do arquitecto que a concebeu para si próprio; encontra-se num dos mais magníficos locais do mundo, em termos monumentais e paisagísticos; e tem um desenho prodigioso que a faz parecer mais um elemento vivo, aninhado sobre os penedos e a vegetação luxuriante da serra.
Não sei o que será dela no futuro. Até por isso, sou hoje uma pessoa muito mais rica porque tive a oportunidade de ouro de passar um serão com o bisneto de um arquitecto que muito admiro, naquela que me parece ter sido a sua melhor obra de todas: a que criou para si próprio num local que parecia impossível.
Só quando entrámos no carro é que percebi o quanto me estava a sentir “em casa”.
Às vezes penso que sonhei.
Obrigado Martinho.
ZM
PS: Fotos retiradas do livro Raúl Lino, da Editorial Blau
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